30 de Abril de 2024

Salvador tem 118,3 mil famílias superendividadas, aponta CNC

Primeiro você solicita um empréstimo de R$ 89 mil para comprar um imóvel. No mesmo ano, retira R$ 29 mil do seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para investir em uma barbearia. No ano seguinte, faz outro empréstimo de R$ 40 mil para empreender em um restaurante e, em seguida, ainda utiliza mais R$ 10 mil no cartão de crédito para investir em um depósito de bebidas. Foi dessa forma, empreendendo diversas vezes sem fazer um planejamento, que o soteropolitano M.S [que prefere não se identificar] acumula hoje cerca de R$ 300,00 mil em dívidas. Ele viu seu nome ser negativado e entrou na estatística de superendividado. 

Em Salvador, 118,3 mil famílias, o que representa 12,6% do total na capital baiana, não têm condição de pagar dívidas, ou seja, estão no âmbito do chamado superendividamento. Os dados são da  Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio (CNC), que traz dados de setembro deste ano. 

A Lei 14.871/2021 define como superendividamento “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial”. Em outras palavras, é quando a pessoa superendividada não consegue mais pagar as dívidas e ainda manter o básico para sobreviver com o salário que recebe, diferente do endividamento, como explica o economista Edval Landulfo em conversa com o Portal A TARDE.

“Uma pessoa quando está endividada, é porque tem contas a pagar, as despesas normais [alimentação, água, energia elétrica]. E mesmo que haja atraso, ela consegue quitar no próximo mês ou nos próximos dias. Já uma pessoa superendividada não tem mais condições de pagar suas dívidas, porque ficaria comprometida com as contas básicas, como supermercado, energia, água, aluguel… Então, ou ela paga as contas, ou ela consegue sobreviver”, explicou. 

Fazendo parte deste cenário, M.S vive mergulhado em uma dívida sem ter previsão de quando conseguirá pagar com o atual salário que recebe como gerente de relacionamento de pessoa física de uma agência bancária, na capital baiana. Em conversa com o Portal A TARDE, ele conta o que levou a esse descontrole financeiro e revela arrependimento em não ter procurado ajuda profissional. Segundo o baiano, o excesso de confiança, a falta de conhecimento e a facilidade de crédito contribuíram para que ele chegasse na situação atual. 

“Em 2022, abri dois estabelecimento [uma barbearia e um restaurante] sem nenhum conhecimento do tipo de nicho [público consumidor]. No ano seguinte, eu já queria empreender mais, mesmo já não indo muito bem nos dois primeiros. Eu achava que tudo ia dar certo apenas com vontade de fazer.  Estava com capital sobrando, os bancos liberavam crédito com facilidade porque, em tese, um funcionário de instituição financeira tem total conhecimento dessa área e domina as finanças. No entanto, não foi o que aconteceu. Eu investi pesado mas não tive instrução e pessoas de confiança para gerenciar os locais e negligenciava demais a administração. Não estava presente nem nos momentos que eu estava lá fisicamente. Terceirizei um serviço que era para ser meu, mas eu não administrava nem organizava as finanças. Eu não colocava na ponta do lápis os gastos e estava encaminhando isso para meu sócio, que era uma pessoa que tinha muita energia, mas nenhum conhecimento técnico também, assim como eu. Infelizmente me dei conta muito tarde, e agora estou com uma dívida de R$ 300 mil que ultrapassa totalmente meu salário e ainda nem sei como um dia vou conseguir pagar”, contou. 

Mais do que um descontrole financeiro, o economista Edval Landulfo explica ainda que o  superendividamento não é um problema apenas da pessoa, mas também uma responsabilidade do sistema bancário e de crédito. Segundo ele, é um cenário que combina oferta de crédito com juros altos, publicidade abusiva, ausência de educação financeira e de políticas públicas efetivas, além do baixo salário.

“No caso da pessoa que chegou ao grau de superendividamento, é necessário o choque de realidade e a passagem por uma terapia financeira, que vai desde uma boa educação financeira, como o acompanhamento por um psicólogo. Isso é importante para que ela não só aprenda a ter controle perante suas finanças pessoais, mas também para que possa entender de onde vem alguns comportamentos e desejos. Tem gente que entra em uma zona perigosíssima de acreditar que tudo que ela vai fazer vai dar certo, sem fazer avaliações de risco. Tem outras pessoas que se endividam partindo da premissa de que terá dinheiro para quitar essas dívidas e empréstimos, mas nem sempre é assim. Então existe uma série de fatores que, juntos, levam a um déficit financeiro e, consequentemente, ao superendividamento”, explica o economista.

Cartão de crédito é vilão?

Engana-se quem pensa que o termo superendividado está atrelado apenas ao valor da dívida. Há quem tenha dívidas de menor valor, mas, ainda assim, esteja também passando pela mesma situação. A líder de atendimento M.M [que também prefere não se identificar], é um exemplo disso. Assumindo não ter nenhum tipo de educação financeira, ela teve seu nome negativado aos 19 anos por causa do mau uso do cartão de crédito e já acumula hoje, aos 26 anos, cerca de R$ R$ 15 mil em dívidas.

“Nunca tive um controle financeiro. Quando fiquei ‘de maior’ apareceram as oportunidades de fazer cartões de crédito em lojas, e comecei a comprar. Saí do trabalho e sujei o nome pela primeira vez aos 19 anos, justamente com cartão de crédito de lojas. Não tive mais como pagar”, contou em entrevista ao Portal A TARDE.

Em Salvador, o percentual de inadimplentes no cartão de crédito subiu de 89,8% para 92,2%, na comparação entre agosto e setembro deste ano, ainda segundo a Peic. A modalidade é perigosa para quem não sabe utilizar de maneira adequada, já que os juros rotativos superam os 400% ao ano. Desta forma, quem está fazendo compras através dos cartões tem que monitorar com frequência para não estourar a capacidade de pagamento, atitude que M.M não teve e acabou fazendo com que ela entrasse em uma bola de neve, chegando ao “fundo do poço”. 

“Em 2022, decidi ir morar com uma amiga e as coisas pioraram ainda mais. Porque além de eu comprar sem controle, eu passei a ter dívidas de ‘adulto’. Comecei a ter responsabilidades com coisas de casa, comprei móveis, aí vieram as contas básicas de casa e eu fui entrando numa areia movediça. Eu usava um cartão que minha amiga deixou comigo e fui fazendo dívidas que eu não sustentava mais. Meu salário não dava para pagar tudo que eu comprava no cartão de crédito mais as dívidas de casa. Comecei então a ‘trocar o cartão’ todo mês [passar o cartão e pegar o dinheiro para pagar] e com isso entrou muitos juros e foi virando uma bola de neve. Ela sempre me alertava, mas eu não enxergava que estava me afundando. Até que ela bloqueou o cartão. Me vi numa situação tão complicada que cheguei até a pedir empréstimo com agiota. Depois de muito tempo nessa situação, meus pais me ajudaram a pagar o cartão dela. Hoje sigo tentando me organizar para tentar um dia pagar as dívidas do meu cartão que ainda seguem lá e limpar meu nome”, contou. 

APOIO A PESSOAS SUPERENDIVIDADAS: SAIBA COMO ACIONAR

Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) 

Baianos superendividados nos termos da Lei 14181/2021 que precisarem de apoio para conseguirem quitar as dívidas podem contar com o Núcleo de Conciliação e Mediação de Conflitos Oriundos de Superendividamento do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA).

A unidade oferece gratuitamente oficinas interdisciplinares de educação financeira e psicologia do consumo, além de plano de repactuação para balizar a tentativa de conciliação entre devedor superendividado e credores.

Em entrevista ao Portal A TARDE, a Juíza Fabiana Andrea de Almeida Oliveira Pellegrino, Coordenadora do Núcleo de Superendividamento, explicou que o núcleo é um importante instrumento de execução da política nacional das relações de consumo e surge a partir da lei que aprimorou o código de defesa do consumidor, ou seja, “veio para disciplinar a concessão responsável do crédito, criando novos princípios, direitos básicos e hipóteses de cláusulas abusivas”.

Agendamento 

Interessados podem realizar o agendamento on-line no site do TJBA. No dia e horário marcado, o cidadão deve comparecer ao Núcleo de Superendividamento com todos os documentos pessoais, contratos ou informações das dívidas e comprovante de renda. A unidade está localizada na Sala 310 – N, do prédio-sede do TJBA, na 5ª Avenida do Centro Administrativo da Bahia.   

Após análise das condições econômicas do indivíduo, ele participa de oficinas de educação financeira e psicológica. Em seguida, será marcada a audiência conciliatória para tentativa de repactuação da dívida com os credores, com a presença de todos os credores, mediante atuação de conciliador qualificado. 

“É um trabalho espetacular e sem custo algum. É feito de forma sigilosa, ou seja, nenhum dado que informado pelo consumidor pode ser compartilhado. A pessoa tem a mão do Estado, a mão mais qualificada para prestar esse apoio”, diz Fabiana Pellegrino. 

Para mais informações, basta entrar em contato com o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), por meio do telefone (71) 3372-5396 ou do e-mail [email protected].  

Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA)

A Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) conta com o projeto  “Mesa de Negociação”, iniciativa que promove acordos extrajudiciais entre assistidos e instituições financeiras, comerciais, prestadoras de serviços e entidades que atuam com operações de crédito. 

A defensora pública Eliana Cavalcante Reis, idealizadora do projeto, explica que com a vigência da lei dos superendividados, além de atuarem para oferta de crédito de forma consciente, é obrigação das empresas também atuarem conjuntamente para repactuar as dívidas do consumidor. A lei também prevê que as instituições que não aderirem ao plano de repactuação podem ser judicialmente suspensas do recebimento de seus créditos, já que ela não estará cumprindo seu papel de cooperação para reinserção do consumidor”. 

Para ter acesso ao serviço, é preciso realizar agendamento através do “Disque Defensoria - 129”

PROGRAMAS DE RENEGOCIAÇÃO 

Segundo a Fecomercio-BA, o que traz certa tranquilidade para o cenário de inadimplência na capital baiana é o percentual da renda familiar comprometida com a dívida, avaliada em patamar saudável, de cerca de 30%. 

Segundo a Federação, não é possível afirmar categoricamente que os programas de renegociação de dívidas, sobretudo o Desenrola, ajudou no número de superendividados registrado em setembro. Na comparação com agosto deste ano, a entidade calculou o recuo de 1% para a chegada nos atuais 12,6% de famílias na situação, ainda na análise de Salvador. 

“A tendência de recuo já vem desde o ano passado com a melhora das condições econômicas das famílias da região, com mais emprego e renda. O programa pode ter contribuído sim, pois está sendo uma oportunidade única para os consumidores, uma vez que as condições de acerto de dívida são mais vantajosas do que o visto tradicionalmente nos feirões de limpa nome. Ou seja, contribuiu no cenário, mas não é a variável mais relevante”, diz o órgão.

Alguns dos principais programas que têm contribuído para a diminuição de pessoas superendividadas são: 

Renegocia! -

O Renegocia! é um mutirão de negociação de dívidas organizado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que tem como objetivo a prevenção do superendividamento e auxílio aos consumidores na negociação de suas dívidas, de forma mais acessível.

O mutirão abrange dívidas de diferentes setores, como instituições financeiras, empresas de telefonia, água, energia elétrica, entre outros. O objetivo é fornecer suporte abrangente para os consumidores em diferentes áreas de endividamento.

Neste ano, o mutirão ocorreu no período de 24 de julho a 11 de agosto e foi realizado de forma presencial nos órgãos de defesa do consumidor de todo o país (Procons, Ministério Público, Defensoria Pública e associações de defesa do consumidor). Ainda não há confirmação de que o programa ocorrerá em 2024.

Anualmente, a empresa promove o ‘Serasa Limpa Nome’, programa em que empresas parceiras disponibilizam ofertas com descontos bem maiores comparados aos demais períodos do ano a fim de estimular os consumidores a quitarem as suas dívidas, reorganizar as contas e retomarem acesso ao crédito.

Neste ano, o Feirão Serasa Limpa Nome iniciou no dia 30 de outubro e vai até a 30 de novembro. Em Salvador, o feirão chegará semana que vem, no dia 7 de novembro.  É possível negociar dívidas de forma presencia, online no site ou pelo aplicativo do Serasa. 

Desenrola 

O Desenrola Brasil é um programa de incentivo à renegociação de dívidas de pessoas físicas que estão inscritas em cadastros de serviços de proteção de crédito (SPC, Serasa Boa Vista).

O programa opera com três fases (todas podem ser consultadas no site do governo). Atualmente, o programa está em sua segunda fase, que iniciou no dia 9 de outubro de 2023. Essa etapa vai renegociar cerca de R$ 60 milhões de dívidas de até R$ 5 mil e beneficiar até 32 milhões de pessoas.

A adesão ao programa Desenrola Brasil 2023 vai até 31 de dezembro de 2023. O Ministério da Fazenda prevê que o programa beneficiará até 70 milhões de pessoas a quitar cerca de R$ 50 bilhões em dívidas. Para participar, é necessário acessar a plataforma do Desenrola Brasil e entrar com seu cadastro do gov.br.

OS PROGRAMAS SÃO EFICIENTES? 

Para o economista Edvan Landulfo,os programas conseguem minimizar o problema. "Os programas são eficientes. Não é atoa que a Serasa Limpa nome faz dois programas por ano justamente depois daquelas festas de ano novo, carnaval.. Então você já faz um limpa nome com muita gente que deixa de pagar a conta para curtir esses períodos. O Renegocie nos últimos anos já aparece bastante com várias empresas. E o Desenrola Brasil foi um dos maiores programas já feitos principalmente pelo governo federal”, afirmou. 

Segundo ele, ter um especialista na frente de uma entidade como o Ministério da Fazenda, é possível perceber que a inadimplência, o endividamento, a negativação da população coloca em risco a situação econômica do país.

“As pessoas deixam de comprar porque estão com crédito suspenso ou com crédito deficiente. Se não compra muitas coisas, coloca em risco a produção nas empresas, porque as empresas vão produzir para quem comprar?  Com isso, contrata menos. Dessa forma o governo também vai arrecadar menos, porque as empresas não vendem tanto. Então esse ciclo de endividamento acaba prejudicando a arrecadação do governo, a contratação nas empresas e, consequentemente, diminui o poder de compras daquela população”, disse

DICAS PARA SAIR DO SUPERENDIVIDAMENTO

1 - Se planeje e coloque na ponta do lápis cada dívida 

2 - Evite parcelamentos. Renegocie e tente quitar as dívidas mais altas e depois as menores 

3 - Procure ajuda e auxílio de órgãos de defesa do consumidor, como o Procon de seu município. Lá, eles poderão analisar o seu caso e te orientar as melhores formas de sair do endividamento.

 

Informações do jornal A Tarde / Foto: Foto: Reprodução l Freepik

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